Voltar 'Não sou o vilão desta história', garante homem condenado por violência doméstica

Reconhecida pela ONU como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência de gênero, a Maria da Penha não é uma unanimidade. "Vamos ser sinceros: essa lei não funciona direito", afirma Ernani Cordeiro da Silveira, agente penitenciário há quase 30 anos e diretor da Casa do Albergado em Florianópolis. É lá que estão os homens condenados por agressão contra a mulher, exceto os autores de feminicídio. Presos por falta de pagamento de pensão alimentícia, crime ambiental, crime contra a ordem tributária, crimes de trânsito e relação de consumo também estão lá, mas são minoria.  

Diferentemente da mesa do delegado Gustavo Kremer (um dos entrevistados desta série de matérias), ocupada por boletins de ocorrência, a mesa do diretor está abarrotada de remédios psiquiátricos. "Veja só, a questão é de saúde pública, esses homens precisam ser tratados, quase todos que estão aqui têm problemas sérios com álcool e droga". Ele conta que, enquanto estão presos, os agressores tomam os medicamentos, mas quando saem voltam a beber e a se drogar e voltam a agredir as mulheres. "Não adianta nada", conclui. 

Um desses presos é Luiz Augusto, host e maître, especialista em vinhos. Luiz conheceu a atual esposa no interior do Rio Grande do Sul, no momento em que ela observava a vitrine de uma loja de vestidos de noiva. "Se você casar comigo" - ele disse - "te darei todos esses vestidos". Ficaram amigos, cada um seguiu seu caminho, se reencontraram e se casaram anos depois.  

"Eu não sou o vilão dessa história, o vilão é o álcool", diz Luiz. Ele e a mulher bebem muito e, segundo Luiz, as coisas saem do controle quando isso acontece. Da última vez, beberam, discutiram, ela ameaçou voltar para o Rio Grande do Sul e ele, então, a trancou num quarto do apartamento e a deixou lá. Luiz Augusto dormiu e foi acordado por policiais que o prenderam em flagrante.  

Luiz considera errado estar preso com pessoas que, de acordo com ele, são muito mais violentas. "Tem gente aqui que agrediu a irmã, a mãe, um quebrou as costelas da esposa com uma enxada, outro desfigurou o rosto da namorada com socos, eu não fiz nada disso, eu não sou assim, eu amo a minha mulher, com ela conheci o amor de verdade". É a terceira vez que Luiz Augusto está preso. A primeira, acusado de ter colocado fogo na própria casa, e a segunda por ter batido na atual companheira.

Um advogado catarinense, que já atuou em diversos casos de violência doméstica, argumenta que a Lei Maria da Penha é boa, mas é aplicada de maneira equivocada, o que gera muitas condenações abusivas. "Se amanhã minha esposa for à delegacia e disser que cheguei bêbado, drogado e bati nela, pronto: medida protetiva, serei exilado do meu lar e condenado. Basta a palavra da suposta vítima e qualquer laudo de lesão corporal mequetrefe para que a condenação esteja selada. Isso está errado", argumenta.

A lei tem esse nome em homenagem à farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Ela foi casada por 23 anos com um professor que tentou matá-la duas vezes: a primeira, com um tiro que a deixou paraplégica. Depois de quatro meses hospitalizada, Maria voltou para casa e o agressor tentou assassiná-la de novo, com choques elétricos e afogamento.

Maria, então, pegou os três filhos, saiu de casa e denunciou o marido. E durante 19 anos bateu em portas de delegacias, fóruns e tribunais na esperança de levar o agressor a julgamento, sem nenhum sucesso. Com ajuda de uma ONG carioca, o caso chegou aos tribunais internacionais e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância com a violência contra a mulher. O país foi obrigado a criar políticas públicas com o objetivo de inibir esse tipo de crime.

"Antes da Lei Maria da Penha, exceto nos casos de homicídio, a violência contra a mulher no Brasil não tinha nenhuma consequência", afirma a desembargadora catarinense Salete Sommariva, presidente do Colégio de Coordenadores da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário Brasileiro (Cocevid). "Agora, com a lei e com todo esse movimento de conscientização e educação, a sociedade acordou e o desafio passou a ser de todos nós."

O combate à violência ganhou reforço em 2015, com a Lei do Feminicídio, incluído no rol dos crimes hediondos. Desde então, matar uma mulher pela sua condição de gênero passou a ser um agravante do crime de homicídio. A pena prevista é de 12 a 30 anos de reclusão. Ainda que tenha aprimorado a legislação e os mecanismos de combate e de prevenção, a Lei Maria da Penha reduziu os casos de violência em não mais de 10% a 15%. E as estatísticas revelam o enorme desafio que a sociedade precisa enfrentar: cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos no Brasil, uma é estuprada a cada 11 minutos e uma é vítima de feminicídio a cada 90 minutos.

Para mudar essa realidade, pontua a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, fundadora do Instituto Brasileiro de Direito de Família e primeira mulher a ingressar na magistratura no Rio Grande do Sul, é necessário refletir sobre as questões culturais. E isso se faz, a médio e longo prazo, com educação e com campanhas permanentes de conscientização. A curto prazo, segundo ela, é preciso reforçar a rede de apoio e fazer com que as mulheres tenham certeza de que o Estado vai protegê-las. Questionada sobre o aumento no número de feminicídios, Berenice é taxativa: "Faltam políticas públicas."  

As causas da violência são variadas e complexas. Fundada em valores patriarcais, a sociedade brasileira é estruturada em modelos de autoridade e subordinação e "isso leva os relacionamentos a se basearem não na igualdade entre as partes envolvidas, mas em padrões de submissão e dominação", conforme cartilha produzida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Essa cultura machista faz com que o homem veja a mulher como uma propriedade, e essa relação de posse é, muitas vezes, o gatilho da violência.

Imagens: Divulgação/Pixabay-Assessoria de Imprensa TJSC
Conteúdo: Assessoria de Imprensa/NCI
Responsável: Ângelo Medeiros - Reg. Prof.: SC00445(JP)

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