ECA 35 anos: histórias e reflexões de magistrados que atuam na proteção da infância - Imprensa - Poder Judiciário de Santa Catarina
Há 35 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) inaugurou um novo marco na proteção integral de meninos e meninas no Brasil. Desde então, muitas transformações foram conquistadas, especialmente a partir do trabalho comprometido de quem atua na linha de frente da garantia de direitos.
Na magistratura catarinense, esse compromisso se traduz em histórias comoventes, desafios constantes e convicção de que cada decisão pode mudar um destino. Em celebração a esse marco histórico, juízas e juízes da Justiça catarinense compartilham seu entendimento sobre o tema e experiências que ilustram a complexidade e a importância do trabalho na área da infância e juventude.
Os depoimentos revelam, por um lado, as dificuldades estruturais ainda enfrentadas para a efetivação das medidas protetivas, como o apoio à família de origem e o enfrentamento das múltiplas formas de vulnerabilidade social. Por outro, destacam avanços concretos no sistema de adoção, o fortalecimento de vínculos afetivos, o papel do Judiciário e uma reflexão sobre a mudança no perfil dos adotantes.
Confira depoimentos que reforçam a importância do ECA, sem deixar de apontar caminhos para o aperfeiçoamento e a necessidade de políticas públicas efetivas:
“As campanhas de conscientização produzidas pelos Tribunais e a atuação dos Grupos de Apoio à Adoção modificaram a forma como os adotantes constituem o seu perfil de habilitação, o que permite a adoção tardia, de grupos de irmãos e de crianças e adolescentes com características especiais. As famílias substitutas, que se encontram habilitadas atualmente no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), oportunizam a formação de novos núcleos familiares, os quais não eram possíveis há alguns anos.”
Juiz Christian Dalla Rosa, titular da Vara da Família, Infância e Juventude, Idosos, Órfãos e Sucessões da comarca de Xanxerê
“Com a materialização da Doutrina da Proteção Integral em nosso ordenamento jurídico através do artigo 227 da nossa Constituição da República de 1988, surge a necessidade de uma nova Política de Atendimento da População Infanto-juvenil, com uma legislação que, ao contrário do antigo Código de Menores, reconheça crianças e adolescentes como efetivos sujeitos de direitos e não apenas objetos de intervenção Estatal.
Nesse contexto e paralelamente à criação, pela ONU (Organização das Nações Unidas), da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, surge nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, reconhecido pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) como um modelo de adaptação das legislações à Convenção Internacional.
Nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, portanto, é uma Lei de Excelência, que mais que reconhecer direitos, cria mecanismos para efetivá-los rompendo com a doutrina “menorista” e exigindo que todos os sujeitos do Sistema de Garantidas dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes conheçam e interpretem o texto legal, a fim de implementar a Doutrina da Proteção Integral de forma plena, com a observância aos Princípios da Prioridade Absoluta e do Respeito à Condição Peculiar de Pessoa em Desenvolvimento.”
Juíza Daniela Fernandes Dias Morelli, titular da Vara da Infância e Juventude e Anexos da comarca de Jaraguá do Sul
“Um caso bem marcante diz respeito a um grupo de 5 irmãos, que foram destituídos do poder familiar por sofrerem muitas violências e negligências por seus pais. Como os irmãos eram bem apegados, a primeira opção foi a adoção de todos juntos. Inicialmente surgiu um casal que morava em outro Estado e aceitou os cinco, mas não deram conta e trouxeram de volta.
Como não havia mais ninguém no país que ficasse com todos juntos, tomamos a difícil decisão de dividir os irmãos. Uma família adotou dois e outras três famílias adotaram uma criança cada, todas de diferentes cidades de Santa Catarina. Assim os cinco foram adotados, inclusive o mais velho de 15 anos. E o melhor é que os vínculos foram mantidos, tanto que as famílias se reúnem uma vez por mês, e no último Natal os cinco irmãos com seus pais adotivos passaram o dia juntos.”
Juiz Fernando Machado Carboni, titular da Vara da Infância e Juventude e Anexos da comarca de Itajaí
“Trabalhar na área da Infância e Juventude é trabalhar com os olhos e esperança voltados para o futuro. A Infância e Juventude tem sido cada vez mais uma fase da vida reduzida, em razão da rapidez das informações e dos avanços tecnológicos e, por isso, há necessidade de implementar, com mais eficiência, o princípio da prioridade absoluta, em todos os aspectos.
O Judiciário (e o Juiz da Infância e Juventude) tem um papel fundamental para que isso ocorra, notadamente quando assume o protagonismo articulador e interlocutor das políticas públicas e do fluxo de trabalho do Sistema de Garantias dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, com a organização de protocolos de atuação dos órgãos e entidades, reuniões intersetoriais e implementação de projetos voltados ao fortalecimento familiar e à escuta ativa e geração de conexão entre as pessoas.
Atuando há aproximadamente dez anos nesta área na Comarca de Camboriú, posso afirmar que já avançamos muito e vivencio com muita satisfação esse trabalho voltado para as gerações futuras, projetando, em meu íntimo, o mundo que eu gostaria que a minha filha e os meus netos poderão viver, com mais amor, respeito, empatia, sem preconceitos e julgamentos e mais autorresponsabilidade.”
Juíza Karina Müller, titular da Vara da Família, Infância e Juventude, Idoso, Órfãos e Sucessões da comarca de Camboriú
“Ao longo de mais de 10 anos na titularidade da Vara da Infância e Juventude da comarca de Lages, foi possível trabalhar com as mais variadas histórias de vida envolvendo crianças, adolescentes e seus familiares em situação de vulnerabilidade.
Enfrenta-se grande dificuldade para implementação das medidas de proteção estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, notadamente para manter a criança e o adolescente com a família biológica ou extensa, devido à gravidade dos problemas no contexto sociofamiliar e à dificuldade no enfrentamento e solução dos mesmos, envolvendo questões culturais, educacionais e, naturalmente, hipossuficiência das famílias em situação de risco.
Por outro lado, ao concluir o processo legal para o encaminhamento de crianças e adolescentes para adoção, inclusive grupo de irmãos, a satisfação de atuar nesta área é imensa, compensando as agruras dos demais processos em que se toma conhecimento de toda espécie de violência praticada contra a criança e o adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente precisa evoluir no aspecto da proteção para tornar mais efetivo o princípio da proteção integral, observando-se sempre o melhor interesse da criança e do adolescente, facilitando o seu encaminhamento para adoção quando submetidos a situações de vulnerabilidade extrema e violência em geral.
Finalmente, é preciso que o Estado em geral implemente políticas públicas relacionadas à infância e juventude, de modo a prevenir situações de vulnerabilidade, naturalmente toleradas por todos, porque rotineiras, especialmente em grandes cidades, a exemplo de crianças e adolescentes em situação de rua, mendicância, uso e tráfico de drogas, dependência química, trabalho infantil, exploração sexual, dentre outras. Portanto, o Estatuto é adequado, mas deve ser aperfeiçoado, notadamente na área da socioeducação, em que as demandas da sociedade em geral não são as mesmas da época em que o ECA entrou em vigor.”
Juiz Ricardo Alexandre Fiuza, titular da Vara da Infância e Juventude da comarca de Lages