Voltar Para advogado da infância, mundo adulto precisa ver jovem como sujeito de direitos

Ênio Gentil Vieira Jr é advogado da Infância e Juventude do Poder Judiciário catarinense desde 2005. Nestes 15 anos, "a despeito de todas as dificuldades práticas enfrentadas pelos que lidam diariamente com os direitos de crianças e adolescentes", ele diz não lembrar de um único dia no qual tenha ido trabalhar sem vontade ou sem entusiasmo. Nesta entrevista concedida ao jornalista Fernando Evangelista e realizada em comemoração aos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, Ênio conta a história de um adolescente "cliente assíduo da Justiça na seara infracional" que parecia, sob todos os aspectos, irrecuperável.  "Achei que ele fosse um caso perdido, mas eu estava equivocado". 

 

P: O senhor poderia falar um pouco sobre o começo da sua carreira?

 

R: Tive a sorte de ser aprovado no concurso para o cargo de Advogado da Infância e Juventude em 2004 e tomei posse no ano seguinte. Passados 15 anos de ofício, metade da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, não me lembro de um único dia no qual tenha vindo ao Fórum trabalhar sem vontade ou entusiasmo, a despeito de todas as dificuldades práticas enfrentadas pelos que trabalham com os direitos de crianças e adolescentes. É curioso: prestei o concurso para uma só vaga, pensando que, se passasse, continuaria estudando para o concurso da magistratura ou do Ministério Público. No entanto, antes mesmo de tomar posse, o Dr. Francisco Oliveira Neto me solicitou para atuar como Defensor Dativo para dar seguimento a processos que estavam parados ante a ausência de titular na Advocacia da Infância. Esta situação perdurou por um mês e, no dia 19 de janeiro de 2005, dia da posse, já sabia que era na Justiça da Infância e Juventude onde iria trabalhar durante toda a minha carreira.

 

P: Qual é a sua opinião sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que completou 30 anos este mês?

 

R: O Estatuto da Criança e do Adolescente, inegavelmente, nos impôs um novo paradigma no trato dos direitos das crianças e dos adolescentes. Antes do Estatuto, a pessoa com idade inferior a 18 anos era chamada simplesmente de "menor" e não era vista como sujeito de direitos civis, sociais e fundamentais. Era vista como objeto de intervenção do mundo adulto. O Estatuto obrigou o "mundo adulto" a abandonar esta visão e este procedimento.

 

P: O que poderia ou deveria ser aperfeiçoado no Estatuto?

 

R: No que se refere à questão do acesso à Justiça, por ter o Estatuto da Criança e do Adolescente dispositivos processuais bastante deficientes, creio que seriam necessárias algumas revisões. Neste aspecto, é preciso dar mais atenção às recomendações das Nações Unidas e às experiências de outros países. A Argentina, por exemplo, reconhece de forma mais clara o direito ao protagonismo previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança. Precisamos aperfeiçoar nosso modelo para que tenhamos uma justiça realmente acessível para crianças e adolescentes.  De qualquer modo, são inegáveis os avanços, inclusive no aspecto processual, se comparado à condição de um "não direito" que influenciava os antigos Códigos de Menores.

 

P: Nestes anos de profissão, qual foi a história mais marcante - envolvendo criança e adolescente - que o senhor acompanhou?

 

R: A história de um adolescente, em conflito com a lei, que era um "cliente" assíduo da Justiça da Infância e da Juventude da Capital, na seara infracional. Ele - lembro que tinha um problema na visão - nos visitava todas as semanas, eventualmente mais de uma vez por semana. A impressão era de que o rapaz jamais conseguiria dar um rumo na vida. Eu o considerava, confesso, "irrecuperável". No entanto, a equipe técnica que atendeu este rapaz, notando que se tratava de um sujeito de direitos, repleto de possibilidades, jamais desistiu dele.  Aplicou-se, após inúmeras tentativas de medidas em meio aberto, a semiliberdade. O rapaz já contava mais de 17 anos. Ele foi transferido para Blumenau e eu fiquei sem notícias dele por mais de dois anos. Certo dia, não sei se por falha do cartório, foi designada uma audiência relativa a um processo antigo do rapaz, envolvendo tráfico de droga - processo anterior à aplicação da semiliberdade.

 

P: E o que aconteceu?

 

R: O juiz, o promotor e eu tínhamos certeza de que ele não apareceria - eu pensei que talvez ele estivesse preso ou morto. Pois, pontualmente, apareceu o nosso "cliente" para audiência. Agora adulto, demonstrava maturidade, falava bem, havia realizado uma cirurgia para corrigir o problema na visão. Parecia e era um outro rapaz. Dirigindo-se a cada um de nós pelo nome, contou que quando chegou em Blumenau foi muito bem atendido pela equipe da casa de semiliberdade, tendo sido encaminhado para tratamento médico, depois encaminhado para escola e depois para um emprego. Estava finalizando o ensino médio e trabalhava em uma rede de supermercados, na qual iniciara como repositor e já havia sido promovido algumas vezes. Sim, o "cliente" da Justiça da Infância e Juventude, o irrecuperável, havia vencido não só pela sua força de vontade, mas porque o mundo adulto, representado pela equipe técnica da instituição de semiliberdade, passou a vê-lo como sujeito de direitos, titular de direito à vida, profissionalização, educação etc. Eles tinham razão, o cliente da Justiça era um ser humano repleto de possibilidades e potencialidades.

Imagens: Divulgação/TJSC
Conteúdo: Assessoria de Imprensa/NCI
Responsável: Ângelo Medeiros - Reg. Prof.: SC00445(JP)

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