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Voltar Violência contra a mulher aumenta em Santa Catarina e deixa a rede de apoio em alerta - Parte 2

Portas Abertas

"Antes da Lei Maria da Penha, exceto nos casos de homicídio, a violência contra a mulher no Brasil não tinha nenhuma consequência", afirma a desembargadora Salete Sommariva. "Agora, com a lei e com todo esse movimento de conscientização e educação, a sociedade acordou e o desafio passou a ser de todos nós". 

Em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, a Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) implementou o projeto Ágora, focado na reeducação e conscientização do agressor.  Foram criados Grupos Reflexivos, espaços de diálogo para que os homens repensem seus papéis de gênero e suas relações cotidianas. Entre os resultados desejados estão a responsabilização dos autores da violência, a prevenção, a desnaturalização existente entre masculinidade e violência e a criação de uma rede de atendimento para esses homens.

Em agosto último, a Cevid lançou o 2º Concurso Cultural "Dê um Basta na Violência", com a participação dos alunos do ensino fundamental e médio das escolas públicas e privadas da Grande Florianópolis. A partir da primeira edição do projeto, surgiu o "Formar para Transformar", um esforço permanente de capacitação de professores e diretores das escolas públicas de Santa Catarina para lidar com a temática da violência doméstica junto aos alunos em sala de aula.

O projeto pretende incluir a temática na grade curricular das escolas já no ano que vem.  Para isso, a Cevid fez parceria com a Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis, além de outros auxiliares da rede de atenção à mulher.  Outro programa da Cevid, este promovido pelo CNJ em parceria com os Tribunais de Justiça estaduais e em ação desde 2015, é o Justiça pela Paz em Casa. Ele tem como objetivo dar mais efetividade à Lei Maria da Penha e acelerar os processos relacionados à violência de gênero.

O Justiça pela Paz em Casa - já na 12ª semana - desenvolve três edições de debates e ações por ano. As semanas ocorrem em março, marcando o Dia das Mulheres; em agosto, por ocasião do aniversário da Lei Maria da Penha; e em novembro, quando a ONU estabeleceu o dia 25 como Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher. 

A Justiça catarinense implementou outra iniciativa inovadora em Lages. Sob a coordenação do juiz Alexandre Takaschima, titular da unidade judiciária, serão desenvolvidos ciclos de justiça restaurativa com casais envolvidos em violência doméstica. A ideia é buscar a pacificação de forma afetiva com a reconstrução de uma relação saudável.

Num primeiro momento, homens e mulheres são divididos em dois grupos de reflexão. Um casal de facilitadores, capacitado para a atividade, levanta temas como comunicação não violenta e questões de gênero, trazendo depoimentos de outras mulheres vítimas de agressão e também de homens com dificuldades em seus relacionamentos.

O segundo círculo é formado por um grupo de apoio - familiares, amigos e vizinhos - para um trabalho individual com a mulher e o agressor.  O intuito é fortalecer a estrutura de ajuda tanto da vítima quanto do agressor e identificar as formas de contribuição dessas pessoas para o processo. É nesse momento que inicia a restauração das relações.

No terceiro círculo, após avaliação sobre a possibilidade de sua realização pelos facilitadores, vítima e ofensor serão unidos. "A intenção é que os danos causados possam ser reparados, a vítima possa expor suas necessidades e haja empatia neste processo, com autorresponsabilização, voluntariedade, autonomia e sigilo", diz Takaschima.

Chegada a última etapa, o pós-círculo, a rede faz o acompanhamento do caso e verifica o cumprimento do que foi acordado entre os envolvidos. O interessante nesse trabalho é que nenhum dos casos está judicializado, ou seja, não existe processo na Justiça tradicional.   

Projetos semelhantes já estão em funcionamento em oito comarcas de Santa Catarina. De acordo com o catarinense João Salm, professor de Direito Criminal em Chicago, essas iniciativas são mais eficientes do que as políticas simplesmente punitivas. "Elas permitem, entre outras coisas, que tanto o agressor quanto a vítima compreendam por várias lentes a cultura do machismo, raiz da violência".

Os números comprovam a tese do professor Salm. No Estado de São Paulo, programas focados no agressor são previstos em lei. Em dois anos, os casos de reincidência da violência doméstica caíram de 65% para 2%. Uma experiência em Jundaí, com 259 homens enquadrados na Lei Maria da Penha, mostrou que em oito meses não houve nenhum caso de reincidência. 

Voltando a Santa Catarina, a comarca de Meleiro, no sul do Estado, produziu um Protocolo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica e Sexual em 2015 que hoje é utilizado pela rede de profissionais da saúde, da educação e da assistência social, pelos Conselhos Tutelares e também pela Segurança Pública dos municípios que compõem a comarca. Mais do que uma uniformização no atendimento às vítimas, o protocolo é uma forma de sensibilizar todos os que trabalham com o tema.   

No Oeste, o Juizado Especial de Violência Doméstica da comarca de Chapecó é parceiro da Polícia Militar no programa Guardião Maria da Penha, agora denominado Rede Catarina de Proteção à Mulher. Com atualização constante de uma base de dados, a PM fiscaliza o cumprimento de medidas protetivas e acompanha mulheres em situação de vulnerabilidade. A comarca conta ainda com o projeto Refletir, grupo reflexivo formado por agressores sentenciados que promove palestras e conversas em grupo.  São seis encontros quinzenais.

Além desses e de outros programas, o Poder Judiciário dispõe de uma vara exclusiva que trata da violência doméstica na Capital e três com competência especializada em São José, Chapecó e Tubarão.

Há um interesse crescente de servidores e magistrados catarinenses sobre o tema. Para se ter uma ideia, a Academia Judicial do TJ abriu inscrições para um curso sobre feminicídio e questões de gênero, e as 500 vagas foram preenchidas em apenas um dia. Do total de inscritos, 152 eram homens.     

Seis anos depois da criação da Coordenadoria das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, o CNJ instituiu a Política Nacional de Combate à Violência Doméstica. A partir dela, foi possível traçar um raio X da quantidade de inquéritos, processos, sentenças e pedidos de medidas protetivas, além de revelar o número de varas especializadas e de profissionais das equipes multidisciplinares, com seus respectivos perfis.

No final do ano passado, O CNJ divulgou relatório com base nos dados de 2016. Naquele ano, tramitaram na Justiça brasileira um milhão de processos referentes a violência doméstica contra a mulher, sendo 13,5 mil casos de feminicídio. Isso equivale a um processo para cada 100 mulheres brasileiras. A grande maioria das vítimas era - e continua sendo - formada por mulheres negras.  

Mesmo aprimorando a legislação e os mecanismos judiciais, a Lei Maria da Penha reduziu em não mais de 10% a 15% os casos de violência. E as estatísticas revelam o enorme desafio que a sociedade precisa enfrentar: a cada dois segundos uma mulher é vítima de violência no Brasil, e a cada duas horas uma mulher é assassinada, de acordo com dados oficiais relativos a 2017.  De 87 países, o Brasil ocupa a 7ª colocação entre as nações mais violentas para as mulheres, segundo a ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública.  Conforme o último levantamento oficial, Santa Catarina aparece na 9ª posição entre os estados mais violentos neste quesito, ao lado do Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No topo da lista estão Espírito Santo e Alagoas. 

"Todos esses dados e pesquisas e todo o arcabouço jurídico são muito importantes, mas isso ainda é o primeiro passo de uma longa caminhada. O que nós queremos é um país em que as mulheres terão a certeza de que poderão viver em paz dentro de suas próprias casas", diz a desembargadora Sommariva. Para que isso aconteça, complementa a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, do Rio Grande do Sul, é necessário a médio e longo prazo discutir e refletir sobre as questões culturais e isso se faz com educação, com campanhas permanentes de conscientização. A curto prazo é preciso reforçar a rede de apoio às mulheres, é preciso que elas tenham certeza de que o Estado vai protegê-las". Questionada sobre o aumento no número de feminicídios, Dias é taxativa: "faltam políticas públicas".  

"Eu não via nada, só ouvia" 

As crianças também são vítimas desta violência e, muitas vezes, são as únicas testemunhas. Thaís - hoje estudante universitária - tinha seis anos quando as agressões do padrasto contra a mãe dela começaram. Ela não viu as primeiras agressões físicas, só ouviu. "Eu ficava no quarto, sem dormir, ouvindo os gritos da minha mãe, ouvindo tudo, absolutamente assustada". As agressões tornaram-se cotidianas. A mãe de Thaís ameaçou separar-se e o padrasto, na frente dos enteados, tentou se matar, tomando veneno. Foi levado para o hospital e sobreviveu.

Quando tinha 12 anos, Thaís foi molestada por ele. "Chorei dois dias seguidos sem parar, sentia medo, raiva e culpa e não consegui contar para ninguém o que havia acontecido, só contei agora para minha mãe, muitos anos depois". 

Nessa mesma época, sentada numa mesa no canto da sala, desenhando, Thaís viu a mãe, caída no chão do quarto, sendo puxada pelos cabelos. A menina se levantou e tentou impedir o agressor, mas levou um tapa tão forte que bateu com a cabeça na parede e quase desmaiou. Foi a primeira vez que a mãe dela saiu de casa - e levou os filhos, mas voltou dias depois. "Sinceramente, eu não conseguia entender por qual razão ela tinha voltado, afinal ele tinha me agredido também".

As agressões continuaram e um dia a mãe de Thaís decidiu, finalmente, pedir ajuda. Foi até uma delegacia e registrou um boletim de ocorrência. "Se naquele dia ela não tivesse se levantado, criado coragem e ido à delegacia, talvez hoje ela ainda estivesse casada com ele ou morta", diz. 

 

 

"Não sou o vilão dessa história"

"Vamos ser sinceros: a Lei Maria Penha não funciona direito", afirma Ernani Cordeiro da Silveira, agente penitenciário há 28 anos e atual diretor da Casa do Albergado em Florianópolis. É lá que estão os homens condenados por agressão contra a mulher. Presos por falta de pagamento de pensão alimentícia, crime ambiental, crime contra a ordem tributária, crimes de trânsito e relação de consumo também estão lá, mas são minoria.  Atualmente, a casa está com 60 presos, 40 deles enquadrados na Lei n. 11.340/ 2006.

Diferentemente da mesa do delegado Gustavo Kremer, da 6ª DP da Capital, ocupada por boletins de ocorrência, a mesa do diretor está abarrotada de remédios psiquiátricos. "Veja só, a questão é de saúde pública, esses homens precisam ser tratados, quase todos que estão aqui têm problemas sérios com álcool e droga". Ele conta que, enquanto estão presos, os agressores tomam os medicamentos, mas quando saem voltam a beber e a se drogar e voltam a agredir as mulheres. "Não adianta nada", conclui. 

Um desses presos é Luiz Augusto, host e maître, especialista em vinhos. Luiz conheceu a atual esposa há 34 anos no interior do Rio Grande do Sul, no momento em que ela observava a vitrine de uma loja de vestidos de noiva. "Se você casar comigo" - ele disse - "te darei todos esses vestidos". Ficaram amigos, cada um seguiu seu caminho, se reencontraram há seis anos e casaram.  

"Eu não sou o vilão dessa história, o vilão é o álcool", diz Luiz. Ele e a mulher bebem muito e "as coisas saem do controle quando isso acontece". Segundo ele, o erro dos dois foi não ter percebido que são doentes e que precisam de tratamento.  Há algumas semanas, sábado à tarde, numa quitinete no Itacorubi, bebendo cachaça com Coca-Cola, eles discutiram. A mulher teria ameaçado voltar para o Rio Grande do Sul. "Aí eu a tranquei no apartamento, não deixei sair, não queria que fosse embora". Luiz Augusto dormiu e foi acordado por policiais que o prenderam em flagrante.  

Ele considera errado estar preso com gente muito mais violenta. "Tem gente aqui que agrediu a irmã, a mãe, um quebrou as costelas da esposa com uma enxada, outro desfigurou o rosto da namorada com socos, eu não fiz nada disso, eu não sou assim, eu amo a minha mulher, com ela conheci o amor de verdade". É a terceira vez que Luiz Augusto está preso. A primeira, acusado de ter colocado fogo na própria casa, e a segunda por ter batido na atual companheira.

Um advogado catarinense que já atuou em diversos casos de violência doméstica argumenta que a Lei Maria da Penha é boa, mas é aplicada de maneira equivocada, o que gera muitas condenações abusivas. "Se amanhã minha esposa for à delegacia e disser que cheguei bêbado, drogado e bati nela, pronto: medida protetiva, serei exilado do meu lar e condenado. Basta a palavra da suposta vítima e qualquer laudo de lesão corporal mequetrefe para que a condenação esteja selada. Isso está errado", conclui.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), 89% dos brasileiros defendem que "roupa suja deve ser lavada em casa" e 58% concordam, total ou parcialmente, que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros.  

Transição cultural

As causas da violência são várias e complexas. Fundada em valores patriarcais, a sociedade brasileira é estruturada em modelos de autoridade e subordinação e "isso leva os relacionamentos a se basearem não na igualdade entre as partes envolvidas, mas em padrões de submissão e dominação", conforme cartilha produzida pelo TJ catarinense. Essa cultura profundamente machista faz com que o homem veja a mulher como uma propriedade, e essa relação de posse é muitas vezes o gatilho da violência.

Como se sabe, o problema não é exclusividade nacional, a ponto da ONU classificar a violência de gênero como uma "pandemia global".  De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMC), 1/3 de todos os homicídios de mulheres no mundo são cometidos por familiares, dentro do ambiente doméstico.

Para o professor Theophilos Rifiotis, titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador do Laboratório de Estudos das Violências, há uma luz no fim do túnel porque estamos "vivendo um momento de transição cultural". A chamada segunda onda do movimento feminista, das décadas de 60 a 80 do século 20, tornou público o que era considerado privado e o velho adágio popular `em briga de marido e mulher não se mete a colher" foi posto em xeque. Na década de 90 este tipo de violência foi reconhecido como um problema de saúde pública e passou a ser entendido como uma grave violação dos direitos humanos. 

Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. De acordo com o Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), 89% dos brasileiros defendem que "roupa suja deve ser lavada em casa" e 58% concordam, total ou parcialmente, que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros.

Ao ser questionado sobre o número crescente de registros de violência doméstica, Theophilos diz que "isso não significa, necessariamente, um aumento da violência". Para ele, mais registros podem evidenciar que as pessoas estão mais informadas dos seus direitos e estão também mais confiantes nas ações da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Inclusive, o número de feminicídios reduziu. De janeiro a 14 de dezembro de 2018 foram registrados 38 feminicídios, ante 47 em 2017, conforme dados da Polícia Civil de Santa Catarina.

Essa confiança precisa ser maior do que o medo em dar o primeiro passo. Nas entrevistas com as vítimas de violência realizadas nesta reportagem, tanto nos depoimentos de Mariana, Letícia e Cristina, a palavra mais repetida foi "medo". Medo de retaliação, de sofrer mais, apanhar mais, ficar sem a casa ou sem os filhos, medo de não ser compreendida pela família, medo de começar de novo, medo de morrer.

"Sim, eu tive sorte", diz Mariana, "mas precisei superar o medo e agora estou aqui, refeita, inteira, contando uma história que é, infelizmente, mais comum do que se imagina". 
 

*Foram utilizados nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres vítimas de violência.
 

Texto: Fernando Evangelista / Assessoria de imprensa do TJSC.
Apoio: Taína Borges/Marina Petinelli
Revisão: Gabriel Leonardo Ferri
Ilustrações: Alex Cavalcanti
Fotos: Fernando Evangelista/JusCatarina/ Freepik