Construção histórica do Estatuto

A Lei federal n. 8.069/1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é o marco legal e regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil.

Criada em 13 de julho de 1990, foi resultado de um amplo debate democrático, capitaneado por movimentos sociais, organizações, articulações e atores da sociedade civil e instituições voltadas para a conscientização e o respeito pela criança e pelo adolescente como sujeitos a ter direitos. 

O Estatuto trouxe uma mudança de paradigma, pois foi a primeira legislação com a doutrina da proteção integral na América Latina a se inspirar na Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1979 e na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989.

Nas palavras de João Batista Costa Saraiva*, o Estatuto veio "desconstruindo a ideia de 'menor como objeto do processo' e introduzindo uma mudança paradigmática, criança e adolescente enquanto sujeito de direito, sujeito do processo, protagonista, cidadão".

A Lei n. 8.069/1990 preconiza a doutrina da proteção integral às crianças e aos adolescentes e estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos seus direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

O Estatuto instaurou a proteção integral, por meio dos seus 267 artigos, e uma carta de direitos fundamentais para a infância e a juventude. O documento considera criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

Entre tantas questões importantes trazidas pelo Estatuto, além de considerar a criança e o adolescente como sujeito de direitos, surgiram importantes instituições: o Conselho Tutelar, encarregado de trabalhar e zelar pela defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, e os Conselhos de Direitos da Criança, ambos nos âmbitos nacional, estadual e municipal, tendo como atribuições a formulação das políticas nacional, estadual e municipal para crianças e adolescentes, respectivamente.

Ao longo dessas três décadas, diversos aprimoramentos foram somados ao ECA, como a Lei n. 12.594/2012, conhecida como Lei do Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase), que regulamenta a execução de medidas socioeducativas no país, a Lei n. 13.257/2016 (Lei da Primeira Infância), que obriga o Estado a estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância, e a Lei n. 12.010/2009, denominada Lei da Adoção, que detalha procedimentos da adoção.

Um ponto fundamental a ser ressaltado é a responsabilização dos adolescentes que praticam atos infracionais a partir dos 12 anos, com base no contraditório e na ampla defesa.

Contudo, persistem desafios. Necessário se faz avançar na implementação da integralidade do ECA e das leis afins, com políticas públicas que garantam que direitos fundamentais como educação de qualidade, assistência médica, moradia, alimentação, convivência familiar e comunitária, cultura, esporte, lazer, entre outros, possam ser realmente assegurados.

O Estatuto permanece sendo avaliado como um dos melhores do mundo. É uma das leis mais evoluídas sobre proteção da criança e do adolescente. Sua importância dá-se pelo reconhecimento de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, que vivem em período de intenso desenvolvimento psicológico, físico, moral e social, dignos de receber, com prioridade absoluta, proteção integral.

* http://www.abraminj.org.br/Painel/anexos/Artigo%20-%20Juiz%20Jo%C3%A3o%20Batista%20Costa%20Saraiva.pdf

Por que surgiu

O Estatuto foi criado logo após a promulgação da Constituição de 1988 para regulamentar o artigo 227 da Constituição Federal (CF), que garantia às crianças e adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivência, desenvolvimento pessoal, social, integridade física, psicológica e moral, além de protegê-los de forma especial, ou seja, através de dispositivos legais diferenciados, contra negligência, maus-tratos, violência, exploração, crueldade e opressão. O conteúdo e enfoque desse artigo remetia à Doutrina de Proteção Integral da Organização das Nações Unidas. 

Como surgiu

Na década de 1980, o protagonismo da sociedade se impõe pela expressão de seus interesses. O surgimento do artigo 227 da CF constituiu um capítulo maravilhoso de mobilização social e luta na história da Constituinte de 1988, tendo decorrido de um processo popular de construção legislativa de grande legitimidade.

"Aproveitando o momento, organizações voltadas à infância começaram um conclame de toda a sociedade em prol da 'Emenda da Criança, Prioridade Nacional'. E, assim, crianças e adolescentes tomaram conta do Congresso Nacional para entregar mais de um milhão de assinaturas coletadas. Os legisladores constituintes, demandados, aprovaram, por unanimidade, o artigo 227."* 

O Estatuto é resultado da articulação e da participação dos movimentos sociai,s e contemplou o que havia de mais avançado na normativa internacional em relação aos direitos da população infantojuvenil. Segundo Garrido, "O Estatuto da Criança e do Adolescente é fruto da construção coletiva, do depósito de expectativas de transformação que redundaram em realidades normativas dotadas, por esta razão, de grande legitimidade".**

Considera-se de fundamental importância para o arcabouço legal a participação do Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua, criado em 1985, da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, também de 1985, e a disseminação da Pastoral do Menor, criada em 1978, e tantos outros, como os movimentos de defesa pioneiros na área da criança e dos adolescentes.

* https://prioridadeabsoluta.org.br/entenda-a-prioridade/

** http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=32191-o-ecareflexoes-sobre-os-seus-20-anos-pdf&Itemid=30192

O caminho legislativo foi traçado também a partir de movimentos sociais. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi apresentado na Câmara dos Deputados, em fevereiro de 1989, pelo deputado Nelson Aguiar, com o apoio da deputada Benedita da Silva, o projeto de lei denominado "Normas Gerais de Proteção à Infância e à Juventude". 

O projeto de lei foi resultado de iniciativas realizadas de forma simultânea pelo Fórum Nacional Permanente de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), pela Coordenação de Curadorias do Menor de São Paulo e pela Assessoria Jurídica da Funabem. Para sistematizar e compatibilizar as propostas, um grupo de redação foi constituído, do qual faziam parte representantes do movimento social (Fórum DCA), juristas (juízes, promotores públicos e advogados), consultores do UNICEF e outros especialistas. 

Foram elaboradas cerca de seis versões até a apresentação do substitutivo à Câmara dos Deputados. Em junho de 1989, o mesmo projeto foi exposto ao Senado pelo senador Ronan Tito. Em seguida, foi criada a Frente Parlamentar da Infância. Vários outros eventos ocorreram naquele período, como o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, realizado em setembro de 1989, quando houve votação simbólica da lei pelas crianças do evento. Em 13 de julho de 1990, finalmente foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O primeiro documento legal, promulgado em 1927, para a população menor de 18 anos foi o Código de Menores, que ficou popularmente conhecido como Código Mello Mattos. Tinha forte caráter assistencialista, protecionista e controlador, consistindo num verdadeiro mecanismo de intervenção sobre a população pobre. 

O Código de Menores de 1927 foi revisado somente em 1979, no entanto não rompeu com sua linha principal de arbitrariedade, assistencialismo e repressão da população infantojuvenil. Não era endereçado a todas as crianças e adolescentes, mas apenas àqueles reconhecidos como em "situação irregular". 

O Código de Menores estabelecia diretrizes diferentes para o trato da infância e da juventude. Segundo Carla Carvalho Leite, havia "uma clara distinção entre 'criança' e 'menor', considerando-se 'criança' o(a) filho(a) proveniente de família financeiramente abastada e 'menor' o(a) filho(a) de família pobre".*

A doutrina da situação irregular era excludente e tutelava a infância pobre. Revestia a figura do juiz de grande poder, e o destino de muitas crianças e adolescentes estava à mercê de seu julgamento e de sua ética.

* https://jij.tjrs.jus.br/doc/artigos/edicao-05.pdf

A sociedade não conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda se mostra incrédula em relação ao seu teor, vendo-o, por vezes, como instrumento de permissividade e impunidade. Há dois grandes desafios a serem superados: tonar o ECA conhecido por todos, para desmistificá-lo, e concretizá-lo mediante a implementação de políticas públicas.

Cita-se, por exemplo, a criação dos conselhos tutelares, ferramenta de extrema importância para a garantia dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, que contam com parca estrutura em alguns municípios. Para além de alterar o estatuto, é necessário implementá-lo. 

Os direitos das crianças e dos adolescentes decorrem dos direitos humanos, os quais, segundo a ONU, são tudo o que um ser humano deve ter ou ser capaz de fazer para sobreviver, prosperar e alcançar todo o seu potencial. Todos os direitos são igualmente importantes e estão conectados entre si, não havendo hierarquia entre eles. O documento histórico que marca a positivação desses direitos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, e ratificada pelo Brasil. A Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece tais direitos como um pré-requisito para a paz, a justiça e a democracia. 

Em 1959, a ONU aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, elencando dez princípios a serem seguidos em defesa da infância. Dez anos após, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, consagrou, em seu artigo 19, o direito de todas as crianças às medidas de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado. Por fim, merece destaque a Convenção sobre os Direitos da Criança, com ratificação de 196 países, incluindo o Brasil, considerado o instrumento de direitos humanos mais aceito na história. 

Porque reconheceu às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos e cuidados especiais, por estarem em peculiar condição de desenvolvimento e cuja proteção é prioritária e de obrigação de respeito e cuidado por sua família, pela sociedade e pelo Estado, os quais devem tomar decisões em favor do seu maior interesse e garantindo a sua voz.

A grande mudança que o Estatuto promoveu nestes 30 anos foi a implementação de um direito autônomo, o Direito da Criança e do Adolescente, dando vida e reforçando diversos mecanismos de proteção e acesso à justiça do Estatuto e das leis posteriores, que influíram, inclusive, em outros ramos do Direito.

As mudanças foram tantas, a partir do início do Direito Autônomo da Criança e do Adolescente, que não é possível resumi-las, mas as principais, que deram maior concretude ao direito à convivência familiar e comunitária e segurança à adoção, foram as Leis de Convivência Familiar e Adoção de 2010 e 2017, que garantiram o controle estritamente judicial dos acolhimentos institucionais, com a fixação dos prazos para juízes decidirem e promotores de justiça ajuizarem ações, humanizando as instituições de acolhimento, com plano individual de atendimento elaborado por equipe técnica multiprofissional e prazos máximos de permanência na instituição de 1 ano e 6 meses, com reavaliação a cada 3 meses. Também se incluíram o curso de pretendentes à adoção, regras específicas para a habilitação para a adoção, o acolhimento por famílias acolhedoras e o apadrinhamento afetivo.

A Lei do Sinase foi de importância ímpar na garantia dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei, enquanto o outro momento singular foi a Lei Menino Bernardo, que proibiu castigos físicos de natureza disciplinar ou punitiva, aplicados com o uso de força física que cause sofrimento físico e lesão ou ofereça tratamento cruel ou degradante, que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança e o adolescente, inserido pela Lei n. 13.010/2014.

Por fim, outro bloco de conquistas foram o Marco Legal da Primeira Infância e a Lei do Depoimento Especial, como corolários da garantia dos direitos às crianças de 0 a 6 anos de idade e às vítimas e testemunhas de abusos sexuais e outras violências.

Já o Conselho Nacional de Justiça instituiu as audiências concentradas em 2013, o Cadastro Nacional de Adoção e o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), como formas de dar efetividade às referidas mudanças legislativas.