Voltar TJSC localiza ação de 1819 que traz invasão estrangeira, empatia racial e juiz artista

Leitura de documento antigo com lupa.
 

Parecia uma história comum dentro de um processo judicial: um testamento, um herdeiro, uma fazenda e um juiz. Acontece que este caso – descoberto há poucos dias em meio a milhares de processos antigos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) – é um tesouro da história catarinense com implicações internacionais. 

O caso envolve uma invasão estrangeira e uma negociação que cede como moeda de troca um território do outro lado da fronteira, e se entrelaça com um juiz que contribuiria de forma extraordinária para o desenvolvimento da cultura de Santa Catarina. 

Com data de 1819, o processo chamou a atenção do historiador Adelson André Brüggemann, chefe da Divisão de Documentação e Memória do Judiciário, por um motivo específico: o testamento em questão era de Maria Clara de Jesus, solteira, sem filhos, que deixou alguns bens para Josefa, uma ex-escrava de seu pai, e uma grande e valiosa fazenda para Francisco Manoel, um pardo alforriado. 

O primeiro fio desse novelo veio de uma dúvida, ainda sem resposta: “Por que uma mulher branca, num tempo em que a escravidão era aceita como algo natural, deixou seus bens a dois ex-escravos?” A partir daí, com luvas e lupas, Adelson e sua equipe se debruçaram sobre o processo e descobriram coisas surpreendentes. 

leitura de documento antigo utilizando lupas, máscara e lupa.
 

Na fazenda, localizada na “Paragem dos Barreiros”, em São José, o coronel português Francisco Antônio da Veiga Cabral se refugiou para negociar a devolução da Ilha de Santa Catarina. Ele era o governador da Capitania de Santa Catarina quando os espanhóis invadiram a Ilha em 1777. 

A esquadra espanhola, com mais de uma centena de embarcações, 462 canhões e cerca de 11 mil homens, desembarcou de surpresa em Canasvieiras, sem dar a mínima chance de resistência aos portugueses. 

Na Ilha, chamada Nossa Senhora do Desterro, os novos invasores fincaram a bandeira da Coroa Espanhola, rezaram uma missa na catedral e batizaram o território de Castillo del Punta Grossa. Os portugueses, por sua vez, transferiram a capital do Estado para São Miguel, atual Biguaçu. 

Vários meses depois, na fazenda do capitão Antônio Rodrigues Rachadel, pai de Maria Clara, o governador português, que era ruim de tiro e bom de lábia, ajudou a costurar um acordo geopolítico que entraria para a história mundial, definiria fronteiras e resolveria uma disputa de três séculos entre Portugal e Espanha. 

Assinado em Segóvia, o Tratado de Santo Ildefonso devolveu a Ilha aos portugueses sob a condição de que não usassem o território como base naval. Eles, por sua vez, aceitaram que a Colônia do Sacramento e os Sete Povos das Missões ficassem com a Espanha. 

Homem segurando uma lupa.
 

Outras tantas mudanças geográficas foram determinadas nesse acordo, mas elas não interessam à história de Maria Clara e do seu testamento, que chegou à Justiça catarinense 41 anos depois para ser avalizado pelo juiz Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. E aqui o enredo desse processo se desloca da política para a cultura. 

Nascido no Piauí, formado no curso de Leis da Universidade de Coimbra e autor de vários livros jurídicos e literários, Ovídio foi fundamental para a difusão do teatro em Santa Catarina. Isso mesmo: amante das artes e das histórias bem contadas, o magistrado promovia peças – muitas delas escritas por ele – em sua residência, uma grande novidade na Ilha de Santa Catarina.

Descoberto por um historiador, o caso se assemelha às descobertas arqueológicas. “Vamos retirando camada por camada do documento até compreender a história que ele resguarda”, diz Adelson. A boa notícia para pesquisadores do Brasil e do exterior é que, a partir de agora, esses documentos começam a ser digitalizados e disponibilizados no site do Tribunal de Justiça. 

Ou seja, qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo, que queira ler e pesquisar histórias surpreendentes do passado, processos dos séculos 18 e 19, pode acessar o acervo digital do Portal da Memória.  

Ele é composto de três eixos correspondentes aos tribunais a que os processos estavam vinculados à época: Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, Tribunal da Relação de Porto Alegre e, finalmente, Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Para facilitar as pesquisas, o acervo é subdividido em assuntos e classes processuais, por exemplo: sucessões, inventários, processos criminais etc. Em cada um deles há um resumo do caso, o nome das partes, do magistrado, o ano em que o processo foi autuado e quando terminou, entre outras informações. 

Adelson sublinha que a digitalização só foi possível porque, desde 2015, o Arquivo Central, a Divisão de Documentação e Memória do Judiciário e, por fim, a Divisão de Atendimento ao Usuário realizam esforços para identificar, catalogar e abrigar adequadamente todo o acervo de guarda permanente do Judiciário.  

A digitalização faz parte de uma série de ações – liderada pela desembargadora Haidée Denise Grin, presidente da Comissão de Gestão de Memória do Judiciário catarinense – para preservar e divulgar a história de Santa Catarina.  

Com este acesso irrestrito, talvez os pesquisadores possam descobrir mais sobre a vida de Maria Clara de Jesus e responder a dúvida que iniciou essa história: por que ela deixou seus bens a dois ex-escravos? Qual era a relação entre eles?   

A desembargadora Haidée, Adelson e sua equipe são movidos pela certeza de que em suas mãos não estão apenas documentos antigos, mas fontes primárias raras e valiosas que contam grandes histórias.

O acervo digital do TJ, neste momento, está composto de 130 processos judiciais e segue em constante atualização.

Conteúdo: Assessoria de Imprensa/NCI
Responsável: Ângelo Medeiros - Reg. Prof.: SC00445(JP)

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